A lucidez da Mário Soares sobre o modelo social europeu e as suas repercussões na sociedade e na economia portuguesa.
Transcrição completa deste excelente artigo, publicado hoje no Diário de Notícias:
1. Como os portugueses sabem, sempre fui um europeísta convicto, entusiasta do projecto político europeu, de paz e bem-estar para as populações. Seguramente o mais original e fecundo do século XX. Fui presidente do Movimento Europeu e sempre manifestei as minhas convicções federalistas, no plano europeu.
Ultimamente, tenho chamado a atenção dos portugueses, nesta mesma coluna, e não só, para os riscos em que a União está a incorrer, dada a incapacidade dos seus líderes para concertar uma estratégia de conjunto de ataque à crise que não seja meramente economicista-financeira e que não ponha em causa o nosso modelo social, um dos factores fundamentais da nossa identidade europeia. Num mundo multipolar e globalizado, em que as grandes potências emergentes têm as suas estratégias próprias e o Ocidente, infelizmente, pouco se entende entre si, e parece estar a perder a sua antiga liderança mundial.
A Alemanha, pela voz da chanceler Merkel, está a abandonar o seu tradicional europeísmo - que, diga-se, tanto a ajudou no tempo da unificação - e a manifestar uma certa vontade política de liderar a União, abandonando a ideia dos Pais Fundadores, que era fazer, como se sabe, da Europa, uma Comunidade de iguais, entre todos os Estados membros, pequenos ou grandes, pobres ou ricos.
O próprio motor franco-alemão, que foi tão útil no passado, começa a dar sinais de funcionar mal, visto que a Alemanha procura fazer acordos com a França, que está em crise manifesta, só quando isso lhe convém.
Estive agora uns dias em Paris e calhou estar lá no dia da greve geral. A cidade parecia um pandemónio, com ruas bloqueadas, transportes públicos incertos e filas imensas de automóveis parados, por falta de gasolina, junto a gasolineiras, sem os poderem abastecer. A greve foi nacional, com surtos de violência preocupantes em Lyon e Marselha. E teve uma participação enorme e ultra-agressiva dos jovens estudantes. Lembrava Maio de 68. Com uma diferença fundamental; em Maio de 68, vivia-se o início do expansionismo europeu e do consumismo e, agora, o espectro que nos aflige são os cortes destrutivos no modelo social e uma recessão prolongada...
O pretexto invocado para a actual greve foi o aumento de 60 para 62 anos, como idade da reforma. É ridículo, num tempo em que a longevidade das pessoas cresce. É óbvio que a crispação resulta do modo como a França está a combater a crise, tomando medidas meramente financeiras que, desacompanhadas da luta contra o desemprego, conduzirão, muito provavelmente, à recessão. Em França, como por toda a Europa, com a excepção porventura da Alemanha, dado o aumento das suas exportações.
Em Deauville, no intervalo de uma cimeira tripar-tida - e porquê só tripartida? - com a Rússia, representada pe-lo Presidente Med- vedev, a chanceler Merkel parece ter convencido o Presidente Sarkozy, a rever o Tratado de Lisboa, para lhe introduzir cláusulas muito duras, quanto à gestão monetária. E vale a pena perguntar: os outros primeiros-ministros e ministros das Finanças não deviam ser ouvidos e consultados? Serão considerados, nesse caso, meros súbditos?...
Por outro lado, esta preocupação alemã, meramente financeira e sem debate político e mesmo económico, está a criar um imenso mal-estar em toda a Europa e a afastar perigosamente os cidadãos europeus das suas instituições. É, cada vez maior o afastamento da União Europeia das grandes questões globais, o que lhe retira pres-tígio. Os europeus, independentemente das suas nacionalidades, têm vindo, de resto, a afastar-se, perigosamente, da União, na própria medida em que o modelo social começa a ser menosprezado e atacado.
O Reino Unido tem um governo conservador-liberal, que resultou das últimas eleições. David Cameron, primeiro-ministro, conservador, e o seu ministro das Finanças, George Osborne, acabam de anunciar uma violenta "cura de austeridade". Sem precedentes, mesmo no tempo da senhora Thatcher. Com um défice público que ultrapassa 10% do PIB, pretende aumentar os impostos em 34 biliões de euros (30 biliões de libras) e fazer cortes nas despesas públicas, até 2015, de 81 biliões de libras. Osborne, declarou: "Que o Reino Unido não se pode dar ao luxo de manter o Estado-Providência, como tem sido até agora o caso e, por isso, está obrigado a economizar em quatro anos 18 biliões de libras. O caso do Reino Unido é, porventura, dos mais graves. Mas toda a União Europeia está a tentar reduzir o papel do Estado e, portanto, a pôr em causa o modelo social. A Irlanda, a Espanha, a Itália, a Holanda, a Áustria, entre outros, dos quais se fala menos.
Numa União Europeia cujos governos são maioritariamente conservadores, até o sueco, é natural que quase todos os Estados membros se sintam obrigados a rever em baixa os seus orçamentos e diminuam o número e os salários dos funcionários públicos, as ajudas para habitação, os grandes investimentos públicos e aumentem os cortes no modelo social. Os mais desfavorecidos são, assim, os primeiros sacrificados. Resta saber quais as consequências que estas medidas vão ter na economia real. Stiglitz, Prémio Nobel da Economia, tem escrito que vão conduzir à recessão e prolongá- -la sem eliminar a crise. Daí a impressão, com que ficamos, a de os economistas europeus - ao contrário dos americanos - não terem aprendido nada com a crise e acharem que, passada a crise, tudo pode ficar na mesma, paraísos fiscais incluídos... Ora, não pode.
Depois, as medidas têm outra consequência muito negativa: agravar os conflitos sociais, nos quais estão a participar, como se tem visto por toda a parte, os jovens estudantes universitários e até liceais, por sentirem à sua frente um futuro negro, de desemprego e incerteza.
Triste Europa!
E Portugal?
2. Não será, entre os Estados europeus, dos que estão, para já, em maior aperto. Prometeu cumprir a imposição do Banco Central Europeu e apresentou um Orçamento reconhecidamente mau, mas, de momento, necessário. O problema imediato, no entanto, é saber se passa na Assembleia da República. Na semana passada, escrevi aqui sobre esse tema e afirmei que o seu fracasso seria, para todos nós, um desastre, com repercussões políticas sérias. Não vou repetir-me. Continuo convencido de que o PS e o PSD, que estão, quando escrevo, a debater o assunto, onde se encontram reputados especialistas, vão ter o bom senso de chegar a um acordo que possibilite a passagem do Orçamento, na Assembleia da República e evite uma crise política imediata. Os mercados, como se espera, irão acalmar-se...
Mas, atenção: uma coisa é aprovar um texto, neste caso, o Orçamento, em si mesmo confuso e complexo; outra, aplicá-lo, o que nos vai pôr inúmeros problemas, de ordem técnica, económica, social e política, num período eleitoral em si mesmo difícil.
Importa, assim, que os partidos - todos - se acalmem e debatam, tranquilamente, entre si, sobre o futuro que nos espera. E que levem os seus homólogos europeus a fazer o mesmo. Porque temos de dar à União Europeia um novo impulso para evitar a decadência para onde caminha. Porque, sem isso, a nossa própria recuperação portuguesa tornar-se-á ainda mais difícil.
Um duplo centenário
3. A Academia das Ciências de Lisboa resolveu festejar, em boa hora, o duplo centenário do nascimento do insigne historiador, romancista, poeta e combatente liberal Alexandre Herculano, Nasceu a 18 de Março de 1810, em Lisboa, no antigo Pátio do Gil, na Rua de São Bento, e faleceu na sua célebre Quinta de Vale de Lobos, perto de Santarém, a 13 de Setembro de 1877. Bulhão Pato, poeta romântico, amigo e admirador de Herculano, conta nas suas interessantes Memórias a morte de Alexandre Herculano, a que assistiu, e a enorme emoção que provocou na sociedade portuguesa.
Herculano foi um homem de grandes convicções liberais. Daí que tenha combatido as tropas absolutistas de D. Miguel e tenha sido forçado a exilar-se na Galiza (1828) e, mais tarde, em França e Inglaterra. Foi um dos 7500 "Bravos do Mindelo", vindos dos Açores (Terceira) para derrotar D. Miguel, sob o comando de D. Pedro, que abdicou de imperador do Brasil, para defender sua filha e herdeira, D. Maria II. Durante o cerco do Porto, foi nomeado bibliotecário da Biblioteca do Porto, tendo regressado a Lisboa depois da vitória liberal de Évora Monte e a abdicação de D. Miguel (1834). Alexandre Herculano foi um partidário da Carta Constitucional, outorgada por D. Pedro. A Revolução de Setembro (1836) aboliu a Carta, substituída legitimamente, após eleições, pela Constituição de 1838. Herculano, cartista, escreveu contra os setembristas, dos irmãos Passos Manuel, um folheto intitulado "A voz do Profeta".
Dirigiu então a Revista Panorama, de literatura e história, editada pela Sociedade Portuguesa dos Conhecimentos Úteis. Foi depois nomeado director da Biblioteca da Ajuda, onde realizou um trabalho notável de investigação.
Escreveu, incansavelmente, livros como: Cartas da História de Portugal, que precedeu a sua História de Portugal, infelizmente incompleta, romances históricos, como o Monge de Cister, o Bobo e Eurico, o Presbítero, Lendas e Narrativas e o livro de poesia A Harpa do Crente, etc. E um livro com enorme repercussão: História da Inquisição em Portugal, que lhe valeu uma polémica vigorosa com a Igreja. Publicou então três Opúsculos importantes: Eu e o Clero; Considerações Pacíficas; e Solemnia Verba. E ainda um estudo sobre o seu muito admirado Mouzinho da Silveira.
De 1853 a1854, percorreu os arquivos do Norte do País, a examinar documentos de interesse histórico, dispersos, para os compilar na Portugaliae Monumenta Historica. Exerceu então um trabalho de grande relevo para o estudo do nosso passado histórico, que mereceu a admiração do país culto.
Foi ainda uma espécie de tutor cultural do rei D. Pedro V, do qual esperava muito, mas que morreu muito jovem. Constituiu, essa morte, um grande desgosto para Alexandre Herculano. Teve, também um incidente na Academia das Ciências, com um funcionário acusado de desviar documentos. O que levou o Governo de então, hostil a Herculano, a nomear esse funcionário director da Torre do Tombo, impossibilitando assim as investigações de Herculano.
Por isso, desgostoso, retirou-se para a pequena Quinta de Vale de Lobos, com o seu enorme prestígio moral, literário e de historiador, no auge. Faleceu em Vale de Lobos e mais tarde foi trasladado para os Jerónimos, onde repousa, perto de Camões e agora de Fernando Pessoa. Todos, grandes glórias pátrias.
Na minha juventude, estudávamos muito a obra de Herculano. Cito, entre tantos outros, os livros de Joaquim Barradas de Carvalho: As Ideias Políticas e Sociais de Alexandre Herculano; e de António José Saraiva: Herculano, desconhecido. Para já não falar, entre outros, dos ensaios inesquecíveis de António Sérgio e de Vitorino Nemésio.
A Academia das Ciências - e o seu presidente, Adriano Moreira - está de parabéns por ter organizado um colóquio, que teve intervenções notáveis, sobre Alexandre Herculano e a sua obra, no ano do duplo centenário do seu nascimento. Não podia ser esquecido. A Pátria e a República devem celebrar os seus grandes homens.
«Importa, assim,
...que os partidos - todos - se acalmem e debatam, tranquilamente, entre
si, sobre o futuro que nos espera. E que levem os seus homólogos
europeus a fazer o mesmo. Porque temos de dar à União Europeia um novo
impulso para evitar a decadência para onde caminha. Porque, sem isso, a
nossa própria recuperação portuguesa tornar-se-á ainda mais difícil.»