terça-feira, 8 de maio de 2012

Mário Soares “A obrigação do PS ser fiel ao acordo da troika chegou ao fim” (Entrevista ao i Informação)



Mário Soares “A obrigação do PS ser fiel ao acordo da troika chegou ao fim”
Por Ana Sá Lopes, publicado em 8 Maio 2012

O fundador do PS e ex-Presidente da República indica o caminho pós-Hollande: a ruptura do PS com o memorando da troika

Ao contrário de muitos, Mário Soares sempre confiou na eleição de François Hollande. O fundador do PS defende que a vitória do presidente socialista é um acontecimento que pode impulsionar uma mudança que na Europa já iniciou o seu curso. Em Portugal, Soares também já prevê mudanças. Na sua opinião, se já se provou que a receita não funciona, o PS deve romper com o acordo da troika. Soares não acredita que o governo consiga chegar ao fim do mandato: “Não creio que isto possa subsistir tanto tempo”

Ficou muito satisfeito com a eleição de François Hollande. Em que medida é que um presidente socialista francês pode mudar o actual rumo da Europa?

A Europa já está a mudar. Já estava antes desta vitória que é, realmente, muito importante. A eleição de um socialista pode acentuar a marcha de mudança que está em curso. Esta mudança é, efectivamente, importante porque está a ocorrer de baixo para cima, do povo de esquerda europeu para os dirigentes europeus.

Mas François Hollande tem margem para, tal como prometeu na campanha, boicotar o tratado orçamental europeu?

Não direi boicotar, mas direi que tem margem para transformar um pouco a situação europeia. A senhora Merkel está obrigada a fazê-lo. Em primeiro lugar, porque tem perdido as eleições todas e esta última também não foi um sucesso para ela. Mas há outra razão. Os dirigentes europeus quase todos já perceberam que reduzir a União Europeia à austeridade e aos equilíbrios financeiros para favorecer os mercados usurários e sem ter em conta a recessão económica e o desemprego avassalador que está a crescer, isso implica que a Europa vai de mal a pior. E cada ano que passa vai ser uma desgraça maior. E o povo europeu não quer isso porque tem um sentido da sua própria segurança e quer que os anos de bem estar que teve a Europa e o modelo social europeu continuem. O povo europeu sempre defendeu uma Europa social e não uma Europa liberal.

Mas a senhora Merkel tem sido implacável…

Sim, mas está a arrepender-se, porque começa a não ter espaço, já não tem aliados fortes. Tinha o senhor Sarkozy, que estava de acordo com ela – queriam a mesma coisa os dois. Era um disparate para a França e talvez por isso ele tenha perdido as eleições. E Merkel disse que o apoiava, o que também é significativo. Mas não é só na França e na Alemanha que as coisas estão a mudar. Quando eu digo que a Europa está a mudar também tenho em conta o Reino Unido, que está a mudar e onde os trabalhistas ganharam as eleições municipais. Não ganharam em Londres, mas ganharam-nas por toda a parte e isso conta muito. E veja-se o que se está a passar em Itália, onde já não governa Silvio Berlusconi, mas Mario Monti, que é um tecnocrata, mas um tecnocrata esclarecido. Os democratas italianos (agora os socialistas chamam-se democratas) estão também a favor de uma mudança. E Espanha não pode aguentar-se enquanto país europeu sem uma mudança sensível. E Portugal também não.

E como é que em Portugal se vão reflectir as ondas de choque da eleição de François Hollande?

Acho que François Hollande é um homem de grande cultura. Dizem que é um homem que não tem carisma, mas eu não acho. O carisma é uma coisa que, de repente, aparece. Se começa toda a gente a dizer que Hollande tem muito carisma, passa a ter carisma. Foi o que sucedeu com Mitterrand e com outras pessoas. François Hollande sabe muito bem o que quer. Nós não podemos acabar com o Estado social. Se acabamos com o Estado social e passamos para um Estado liberal, o desenvolvimento da Europa desaparece. Se desaparecer, a democracia entra em crise. Em certos países já está em crise. É preciso ter cuidado com isso. Sem democracia não há Europa. Acho que há uma transformação em curso e a vitória de Hollande dá um grande impulso a essa transformação.

E como é que em Portugal se vai sentir esta transformação?

Toda a gente percebeu tanto em Portugal como na Espanha que só com austeridade não se vai lá.

E o programa da troika?

A troika está dividida. O Fundo Monetário Internacional tem uma posição, o Banco Central Europeu tem outra, a Comissão Europeia tem outra. Esta mudança vai avolumar a necessidade de se entenderem uns com os outros, e acabarem com a austeridade nos termos drásticos em que a exigem. A austeridade cria recessão e desemprego, que são os dois flagelos que temos neste momento na Europa.

E o PS português também vai ser mais activo depois da vitória de Hollande?

Sem dúvida. O líder do Partido Socialista, António José Seguro, acompanhou François Hollande no último comício. Isso é significativo. Ele arriscou estar ali ao lado do líder que podia ganhar ou perder. Os franceses isso não vão esquecer.

Mas o PS vai romper este acordo de cavalheiros que mantém com o governo em torno das medidas do memorando?

Isso é para ser perguntado ao líder do PS. Eu sou um simples cidadão que reflecte sobre as questões, um cidadão socialista. Mas penso que o Partido Socialista não deve ter nenhuma pressa em se substituir ao PSD. Foram eleições legítimas, têm que ser respeitadas, tem de se dar tempo ao tempo. Mas não tenho dúvida que as coisas se encaminham para haver uma mudança também em Portugal.

Eleições a curto prazo?

Não diria eleições a curto prazo. As eleições estão marcadas para 2015, mas não creio que isto possa subsistir tanto tempo, embora o Partido Socialista só tenha vantagem em ficar de fora nos tempos mais próximos.

Acha que a Europa vai agora mesmo avançar pela estratégia de crescimento? Até Angela Merkel fala nisso…

A Europa até agora não tem ido no caminho do crescimento, mas no caminho da recessão e desemprego. O povo português está muito descontente, o governo não dialoga com o país nem com os sindicatos, nem com o maior partido da oposição. O governo está a caminho de ficar cada vez mais isolado.

Diz que o governo não dialoga com o principal partido da oposição. Mas até aqui têm mantido uma espécie de entente cordiale…

Não tem havido uma entente cordiale. A adenda que o Partido Socialista queria acrescentar ao tratado foi completamente ignorada pelo governo. E António José Seguro disse: “Sigam o vosso caminho”. Quem está a seguir o seu caminho e a não olhar sequer para aqueles que poderiam ser seus parceiros são os sociais-democratas e o CDS. Eles que sigam o seu caminho – foi o que disse o líder do Partido Socialista e eu acho que fez muito bem em dizê-lo.

O sr. dr. interpretou essa expressão como um sinal de pré-ruptura…

Sim, sim. O PS sentiu-se durante um tempo obrigado – e bem, porque foi Sócrates que assinou o primeiro acordo – a cumprir. Mas agora que já está toda a gente a falar noutra linguagem, porque é que o Partido Socialista deve continuar a ser fiel a esse acordo?

O sr. dr. está a dizer que o PS já não tem que se sentir obrigado a ser fiel ao acordo da troika?

Exactamente. Tudo evoluiu: o acordo da troika, a troika e o país.

Portanto, o correcto é agora o PS dizer “já não nos sentimos identificados com o acordo da troika”…

Foi o que já disseram. “Sigam o seu caminho” – foi o que disse Seguro e eu concordei com essa expressão.

Isso significa ruptura, significa que o acordo da troika pode ir ao ar?

Pode ir ao ar. Senão for pelo PS, poderá ser pela própria troika que vai ao ar.

A troika pode, ela própria, implodir?

Claro que sim. A troika entrou aqui como se Portugal fosse um protectorado. Mas não é! Isso foi um erro terrível. O primeiro-ministro, com a sua mentalidade neoliberal, disse que era preciso ir além da troika, e isso não faz nenhum sentido, no meu entender. E cada vez faz menos, à medida que a receita se vai desfazendo.

O sr. dr. acha mesmo que a troika está a desfazer-se por causa da guerra entre o FMI e o Banco Central Europeu?

Sim, e por causa das situações que atravessam o resto da Europa.

O caminho certo para o PS e para o socialismo europeu é cortar com o programa da troika?

Acho que esse é o caminho. A austeridade tal como a definem não tem sentido. Pode haver uma certa austeridade, sim, mas devia começar no governo. A austeridade deveria começar no governo e não nas pessoas e, sobretudo, não nos pobres e nos desempregados.

Mas nós estamos obrigados a cumprir o programa da troika…

Essa obrigação foi assumida há um ano. Mas chegou ao fim. A austeridade tem limites. Aliás, até já o Presidente da República o disse.

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Entrevista